terça-feira, 26 de novembro de 2013

O fazedor da paz

Matéria do Jornal O Povo de 25/11/2013 - segue link: http://www.opovo.com.br/app/opovo/paginasazuis/2013/11/25/noticiasjornalpaginasazuis,3167745/o-fazedor-da-paz.shtml

Dos 59 anos de idade, ele já tem 35 atuando a serviço da reconciliação dos outros - entre indivíduos, famílias e nações. O mediador de conflitos William Ury conversa sobre negociação e fala dos caminhos para a quietude.

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Ele vive tentando encontrar soluções para os problemas alheios – que vão desde os conflitos de família até as grandes questões envolvendo o futuro dos países. William Ury é um fazedor da paz. Cidadão do mundo, já viajou por diversas nações, sendo a “terceira parte” na resolução dos conflitos, ouvindo os lados, promovendo o diálogo, buscando a reconciliação.
 A negociação é chave para as questões mais difíceis, ensina o consultor, que é antropólogo e atua há 35 anos nessa área. O segredo para uma negociação bem-sucedida até parece simples: praticar a habilidade de ouvir, manter a calma, pensar antes de falar. Isso tudo antes de agir. A tendência humana é a reação, lembra ele. E, no momento da raiva, o discurso não é dos mais amistosos. É por isso que Ury persiste na técnica de manter a paciência.
Um dos termos de que gosta de usar é “ir para a varanda”. Procure um lugar calmo e fique em silêncio. Sobretudo, coloque-se no lugar do outro. Isso vale tanto para os conflitos no seu relacionamento pessoal como para uma tomada de decisão que envolve todo um povo. A propósito, o Brasil tem uma vocação natural para a negociação, considera o consultor. E continua: o País tende a ter um importante papel de terceira parte nos conflitos mundiais.

William Ury conversou com O POVO antes de vir para o festival Love & Peace, do qual participou no fim de semana. O homem, que há mais de três décadas, vive entre guerras, levou a maior parte do tempo falando sobre paz.

O POVO - O que move você na busca pela paz?
William Ury - Paz é a minha paixão. Eu era um garoto, quando convivi com pessoas de culturas e religiões muito diferente na Europa, na suíça, e me perguntava como fazer para vivermos juntos e lidar com as diferenças mais profundas. Hoje sei que o maior presente que podemos deixar para a próxima geração é uma cultura de paz e prosperidade.

OP – Onde é mais difícil de negociar: na família, entre países, no trabalho?
William – É difícil dizer. Quando eu faço palestras, faço sempre a mesma pergunta à plateia, geralmente, gestores. ‘O que é mais difícil para vocês: negociações com pessoas de fora da empresa, clientes, fornecedores, ou negociações dentro da empresa, com seus colegas, chefes, equipe de trabalho e por aí vai?’ Quando eu faço essa pergunta, normalmente 80% deles dizem: ‘Certamente, a negociação interna é a mais difícil’. Não é com os que estão fora. As pessoas que estão perto de você são as pessoas com as quais é mais difícil negociar. Por exemplo, em uma situação de negócios em família, é uma negociação, muito, muito complicada. A regra geral é quanto mais interna a negociação, mais difícil.
 
OP – E onde está o segredo para solucionar conflitos? Dentro de nós?
William – O segredo somos nós. (risos) Tenho 35 anos de experiência em muitas, muitas áreas diferentes, diplomacia, direito, negócios, família, meio ambiente... São diferentes tipos de conflitos. Nesse tempo, eu descobri que talvez o pior obstáculo para ser bem-sucedido em uma negociação não é o que a gente pensa. O grande obstáculo é a tendência humana a reagir com raiva. Quando você está com raiva, você vai fazer um discurso raivoso, um discurso mau. E você vai se arrepender. Isso sempre acontece nas negociações. A melhor maneira de se dar bem em uma negociação é, eu vou usar uma metáfora aqui, é ‘ir para a varanda’. Acalmar a sua mente. Vá mentalmente para a varanda, um lugar de calma.

OP – Uma busca pelo equilíbrio.
William – Exatamente, pelo equilíbrio. Vá para um lugar de equilíbrio, onde você possa pensar sobre o que é realmente importante para você. Hoje em dia, particularmente com email, mensagens, celulares, é muito fácil perder de vista o que é realmente importante para você. A habilidade de ‘ir para a varanda’ é fundamental para uma negociação bem-sucedida. Tire alguns poucos minutos e apenas fique quieto.
 
OP – Há alguns anos, você escreveu que o poder da negociação é mais importante e mais eficiente do que a violência. O que leva você a acreditar nisso até hoje?
William – Acredito nisso e não é apenas questão de acreditar. Eu estava na África do Sul em 1980, quando Nelson Mandela estava preso, e em 1990, quando ele voltou. Eu assisti a um país dividido entre pretos e brancos. Em poucos anos, o poder da negociação foi capaz de transformar a África do Sul em um lugar democrático. Há transições parecidas no mundo, inclusive no Brasil, que teve o fim do poder ditatorial há 30, 25 anos. O Brasil passou por uma transição no começo de 1990, de um estado ditatorial, em que as pessoas tinham o poder e ditavam as ordens e todo mundo tinha que obedecer às ordens, para uma sociedade em que a tomada de decisões é baseada na negociação. A negociação é a forma mais democrática de tomar decisões. Isso é verdade na política, isso é verdade nos negócios, isso é verdade na família. Não é mais o pai ditando tudo. A mãe, os filhos, todo mundo tem direito agora. É uma verdadeira revolução. É uma revolução acontecendo no mundo, em cada sociedade, nas empresas, na tomada de decisões. Eu tenho participado da revolução durante toda a minha vida e realmente acredito nesse poder. Não que seja sempre fácil. Às vezes, é bem complicado, mas acredito que é importante para todos nós aprendermos habilidades de negociação. 

OP – E onde deve começar essa educação?
William – Na maior parte da minha vida, eu ensino a adultos. Eu falo para estudantes universitários, diplomatas, advogados, pessoas de negócios, gestores, líderes civis, líderes governamentais. Mas acho que o mais oportuno, o mais importante é ensinar habilidades de negociação para as crianças, as criancinhas que estão começando na educação fundamental, que podem aprender as habilidades mais básicas, de ‘ir para a varanda’, de colocar-se no lugar da outra pessoa, de ouvir o que está por trás do que as pessoas estão dizendo, de criar soluções para todos os lados. Esses tipos de habilidades, as crianças podem aprender para criar uma cultura de paz e prosperidade.
OP – Se essas habilidades podem ser ensinadas às crianças, não são tão difíceis assim?
William – Este é o paradoxo de uma boa negociação – as crianças devem aprender. A habilidade de ‘ir para a varanda’, por exemplo, de pensar antes de agir. De, quando você estiver com raiva, antes de dizer algo, contar até 10 antes de agir ou no meio do silêncio, sozinho, só para você.
OP – Tentar ficar em paz no momento de raiva?
William – É isso, você entendeu. A habilidade de ouvir a outra pessoa, a outra criança, de ouvi-los. Ouvir não apenas as palavras, mas os sentimentos por trás das palavras. O que realmente motiva essas palavras? A habilidade de ouvir é extremamente valiosa, não apenas para a negociação, mas para a vida, para a educação, para os negócios, para o trabalho. Ensine as habilidades básicas de ouvir, as habilidades para a nossa inteligência emocional e social. Estudos científicos mostram que crianças que aprendem essas habilidades têm mais sucesso na vida. São habilidades para a vida, para ter sucesso na vida. Todos nós, queiramos ou não, gostemos ou não, somos negociadores. Na maioria do tempo estamos negociando. 

OP – O que você chama de negociação?
William – Negociação é apenas uma palavra sofisticada para dizer que se está tentando chegar a um acordo. E nós estamos sempre tentando chegar a um acordo. Nas pequenas coisas, na mesa de café da manhã, com os filhos, com os colegas de trabalho, com os chefes, com os clientes. Coloque-se no lugar da outra pessoa, aprenda a olhar atrás das posições. Nós focamos na posição. Por exemplo, quando queremos um aumento de salário, temos que fazer a pergunta certa. Por quê? Porque eu quero sustentar minha família, porque eu quero progredir na carreira, porque outra pessoa tem esse mesmo salário. Tente identificar os interesses por trás. Quando eu faço isso, é mais fácil criar as soluções. Há muitas negociações como aquela história da duas irmãs que brigavam por uma laranja e olhavam apenas para a sua posição: ‘Eu quero aquela laranja, eu quero aquela laranja’. Elas pegaram uma faca e partiram a laranja ao meio. Cada uma ficou com sua metade. Uma pegou sua metade, descascou e comeu. A outra irmã pegou sua metade, descascou e usou a casca para fazer um bolo. Em outras palavras, se uma tivesse se preocupado com os interesses da outra, as duas teriam aproveitado mais, já que uma comeria duas metades e a outra teria mais casca para o bolo, sem conflito, compreendendo os interesses da outra. São esses tipos de técnicas que as crianças devem aprender. Isso nos ensina a criar soluções, sucesso para os dois lados, nos negócios, na vida, na família.

OP – Há alguma nação com a qual você considera mais fácil de negociar?
William – Depende muito das pessoas que vivem nessas nações, com certeza. Há pessoas mais fáceis de negociar em uns do que em outros países. Se eu puder dar um exemplo, eu digo que, no Brasil, as pessoas gostam de encontrar uma solução, de ‘dar um jeito’ (ele fala ‘dar um jeito’ em português), de encontrar um caminho. Elas gostam de convivência. O Brasil é um país natural para a negociação. É uma terceira parte natural no mundo. E nós precisamos mais de terceiras partes nos conflitos, no Oriente Médio, na África. O Brasil pode cumprir um papel importante nessa parte de negociação. Sem ofensas, mas o contraste seria com a Argentina, os vizinhos de vocês no sul, onde eu passei muito tempo. Na argentina, eles gostam da posição mais confortável, e está ocorrendo um conflito político agora na Argentina. Há diferenças entre os países, mas, sobretudo, há diferenças entre as pessoas.
 
OP – E há alguma nação mais difícil?
William – Não sei. Há nações diferentes. A questão é se colocar no lugar do outro, ouvir, ser paciente. Se você é impaciente, demora mais a negociar, porque leva-se um tempo para mudar a mente das pessoas. Persistência e criatividade são valores que afetam decisivamente a negociação.

OP – Há quem diga que a guerra faz parte do ser humano. Assim, os conflitos existirão para sempre. Você acredita nisso?
William – Absolutamente não. Sei que muitos acreditam nisso. Escrevi um livro sobre isso, porque eu estava curioso sobre essa pergunta, que eu ouço muito das pessoas, inclusive de pessoas que estão em alta posição de poder. ‘A guerra é inerente à natureza humana’. Pesquisei muito sobre isso durante 10 anos, procurando alguma resposta antropológica. Isso é verdadeiro ou não? Posso dizer a você que isso não é verdadeiro. A guerra, se você puder definir, é uma violência social organizada entre grupos. Há uma grande variedade de diferenças entre os países que vivem em paz e vivem em guerra. O desafio é aprender maneiras melhores de lidar com nossos conflitos do que matarmos uns aos outros.
 
OP – E qual é o papel da religião nesses conflitos?
William – A religião às vezes contribui. Mas frequentemente exageram no papel da religião na guerra. Eu trabalhei na Irlanda, onde há uma guerra entre católicos e protestantes. A religião contribui um pouco para isso, mas há realmente uma guerra entre católicos e protestantes, porque são grupos muito diferentes de pessoas. Eles estão brigando uns com os outros por poder, por identidade. Não é uma guerra por causa da religião, é uma guerra por causa da terra, do poder. Às vezes, confundem e dizem que é uma guerra sobre religião. Mas, na realidade, é uma guerra política.

OP – Entre homens e mulheres, as mulheres têm mais habilidade para negociar?
William – Depende. As mulheres têm mais força, e isso talvez tenha raízes genéticas, têm mais habilidade de prestar mais atenção aos relacionamentos. Elas tendem a cultivar os relacionamentos. Tendem a ser naturalmente um pouco melhores em ouvir. Elas têm habilidades sociais e emocionais para lidar com as emoções dos outros. Mas o desafio para as mulheres é que elas querem ser suaves em lidar com as pessoas, elas querem ser suaves com as pessoas. Às vezes, elas querem ser suaves em lidar com os problemas. Isso é um problema para as mulheres. Para os homens, o problema é oposto. Eles tendem a ser mais duros, mais duros em tentar solucionar os problemas. E sendo duros ao tentar solucionar os problemas, às vezes eles são duros com as pessoas. E isso machuca os relacionamentos. O negociador ideal para mim combina as duas características, masculina e feminina. Simultaneamente, ele é suave ao lidar com as pessoas, mas duro ao tentar solucionar o problema.
 
OP – Como explicar os conflitos em família? As pessoas são geralmente criadas na mesma casa e, às vezes, há conflitos graves em uma comunidade que tende a ser tão igual.
William – Isso é verdade. Por isso digo que, na maioria das vezes, os conflitos familiares são os mais difíceis. Acho que é porque as emoções são muito profundas. Em uma família, dependemos mais um do outro e temos mais expectativas em relação ao comportamento do outro. E, então, ficamos frustrados mais facilmente. Às vezes, é mais fácil lidar com o vizinho do que com alguém da sua própria família. Este é um grande desafio. Por isso, acredito que as habilidades de negociação são tão úteis para criar relações familiares mais fortes e saudáveis. Dois fatores que contribuem para o sucesso no casamento: a habilidade de resolver conflitos e a habilidade de negociar. São o centro para construir casamentos bem-sucedidos e famílias mais fortes.

OP – Você fala muito do eu. Mas há uma frase do filósofo Jean-Paul Sartre que diz que “o inferno são os outros”. Ele está certo?
William – Ele está parcialmente certo. O que faltou ele dizer é que o inferno somos nós mesmos. (risos) Falando sério, nós precisamos aprender como lidar com nós mesmos e nossas próprias questões, para aprendermos a ser capazes de lidar melhor com os outros. Precisamos aprender a ouvir a nós mesmos se queremos ouvir os outros. Precisamos aprender a entender a nós mesmos se queremos entender os outros. Precisamos aprender a respeitar a nós mesmos se queremos respeitar os outros.
 
OP – Você tem uma grande habilidade para falar de solucionar conflitos. Você sempre é bem-sucedido para solucionar seus conflitos pessoais?
William – É uma boa pergunta. Se eu sou sempre bem-sucedido? Não, não posso dizer que eu sou sempre (enfatiza o ‘sempre’) bem-sucedido. Eu ainda estou aprendendo. Eu trabalho na solução de conflitos há 35 anos e eu aprendo alguma coisa a cada dia. Conflito é parte da vida. Qualquer mudança traz conflito e nós frequentemente precisamos mudar. A questão não é sobre ter conflito ou não ter conflito. A questão é ir além para transformar o conflito. De métodos destrutivos, como violência, briga, luta, magoar alguém, para os construtivos, como negociação, diálogo, mediação e por aí vai. Este é o grande desafio pelo qual podemos mudar a forma do conflito, e não eliminar o conflito. E isso vale também para as famílias. A família precisa do conflito. É natural ter conflito, é um fenômeno natural.

OP – Você tem algum lema de vida? Alguma frase que você repita a cada manhã, quando se acorda?
William – Maravilha! Nunca me fizeram essa pergunta. Tenho, sim. A minha frase muda de tempos em tempos, mas recentemente é uma frase da oração de São Francisco, que talvez você conheça. ‘Fazei-me instrumento de vossa paz.’ Eu gosto dessa frase.

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